Roberto A. Tauil –
outubro de 2018.
(Publicado originalmente em
outubro de 2006)
Comentários ao art. 106 do CTN
Diz o art. 106 do Código
Tributário Nacional:
"Art. 106. A lei aplica-se a
ato ou fato pretérito:
I – em qualquer caso, quando seja
expressamente interpretativa, excluída a aplicação da penalidade à infração dos
dispositivos interpretados;
II – tratando-se de ato não
definitivamente julgado:
a) quando deixe de defini-lo como
infração;
b) quando deixe de tratá-lo como
contrário a qualquer exigência de ação ou omissão, desde que não tenha sido
fraudulento e não tenha implicado em falta de pagamento do tributo;
c) quando lhe comine penalidade
menos severa que a prevista na lei vigente ao tempo de sua prática.
A lei vige durante um espaço de
tempo e neste período a sua eficácia é plena. Mas, ao ser extinta, revogada por
outra lei, cessa a sua eficácia, esgota-se no tempo a sua qualificação
jurídica. Entretanto, enquanto teve vida, os fatos ocorridos em sua época
subordinaram-se ao seu reinado e às normas por ela estabelecidas. Esta é a
regra geral.
Há, porém, e como tudo na vida,
exceções à regra geral. Tais exceções estão arroladas no artigo 106 do CTN:
podem ocorrer casos excepcionais em que os efeitos de uma lei nova repercutem
em um tempo já passado, antes mesmo que esta lei ainda não existia.
Tais exceções, todavia, não podem
ser entendidas literalmente como "leis de ações retroativas", pois,
na verdade, lei nenhuma tem a força de retroagir seus efeitos em função,
inclusive, do princípio constitucional da legalidade. Caso contrário, ninguém
mais saberia dizer ou ter certeza de que "estaria dentro da lei" em
determinado tempo e espaço. Todos estariam à mercê de atos futuros, das
possíveis mudanças dos humores do príncipe (ou do legislador).
Mas, quando uma lei trata de um
assunto já tratado em lei anterior, e lhe dá uma definição diferente, pela qual
um contribuinte possa ser beneficiado, aceitar-se-ia adequar à nova definição
os fatos já ocorridos desde que observadas certas circunstâncias.
Aliás, Roque Antonio Carrazza
declara inexistir "lei interpretativa": "Há quem queira –
seguindo na traça do art. 106, I, do CTN – que a lei tributária interpretativa
retroage até a data da entrada em vigor da lei tributária interpretada.
Discordamos, até porque, no rigor dos princípios, não há leis interpretativas.
A uma lei não é dado interpretar uma outra lei. A lei é o direito objetivo e
inova inauguralmente a ordem jurídica. A função de interpretar leis é cometida
a seus aplicadores, basicamente ao Poder Judiciário, que aplica as leis aos
casos concretos submetidos à sua apreciação, definitivamente e com força
institucional" (Curso de Direito Constitucional Tributário, 22ª ed., pp.
345/346).
Feita a ressalva, voltamos:
A primeira exceção ocorre quando
o novo dispositivo dá nova interpretação a outro previsto na lei anterior.
"Lei que interpreta outra há de ser retroativa por definição no sentido de
que lhe espanca as obscuridades e ambiguidades", diz Aliomar Baleeiro.
Observa-se, contudo, que a
interpretação tem que ser originária de lei, matéria do Legislativo, o único
intérprete, no caso, com capacidade de clarear, melhor esclarecer, a norma
legal anterior. Sendo assim, o inciso I do art. 106 está se referindo,
exclusivamente, às interpretações autênticas, isto é, as emanadas do próprio
Poder Legislativo que estabeleceu a norma interpretada e, posteriormente,
esclarece o seu sentido e alcance por meio de uma nova lei. A interpretação
autêntica deve, portanto, ser proferida pelo legislativo que possa derrogar, ou
complementar, a lei anterior.
A cláusula "expressamente
interpretativa" significaria a necessidade de a lei nova realmente
interpretar o sentido exposto na lei anterior, mas, sem por isso, entender que
a nova lei seja matéria específica sobre o assunto interpretado.
Diz Baleeiro: "Expressamente
interpretativa – todavia, não quer dizer que o novo diploma empregue essas
palavras sacramentais, apresentando-se como tal na ementa ou no contexto. Basta
que, reportando-se aos dispositivos interpretados, lhes defina o sentido e
aclare as dúvidas. A pesquisa dos fins da nova lei a esclarece" (Direito
Tributário Brasileiro, 10ª ed., p. 428).
Quando a lei diz "excluída a
aplicação de penalidade à infração dos dispositivos interpretados",
significa que a interpretação oferecida na lei nova não pode, excepcionalmente,
retroagir para punir aqueles que supostamente tenham cometido alguma infração
que, anteriormente, não estava devidamente esclarecida como tal. Pois,
evidente, que a redação anterior era tão nebulosa e confusa, a exigir uma nova
lei que a esclarecesse, como exigir do contribuinte o cumprimento perfeito do
dispositivo somente depois interpretado?
Como diz Sacha Calmon Navarro
Coêlho: "se o próprio órgão legislativo viu-se obrigado a esclarecer o seu
entendimento por reconhecer imprecisão nele, teria o contribuinte uma
clarividência que o fautor da norma demonstrou não ter?” (Curso de Direito
Tributário Brasileiro, 6ª ed., p. 566).
Mas, de importância absoluta é o
entendimento de que sob a alegação de ser a lei confusa ou obscura em alguns de
seus aspectos, não autoriza o contribuinte a não observar a plenitude de suas
normas. Sobre o assunto, explica Hugo de Brito Machado: "Ela diz respeito
à má interpretação da lei, não à sua total inobservância. Admitindo-se, por
exemplo, que em face de algum dispositivo da legislação do IPI se tenha dúvida
sobre a necessidade de emitir o documento 'a' ou o documento 'b', e que o
dispositivo novo, interpretativo, diga que no caso deve ser emitido o documento
'b', não se aplica qualquer penalidade a quem tenha emitido o documento 'a'.
Mas quem não emitiu documento nenhum, nem 'a' nem 'b', está sujeito à
penalidade, não se lhe aplicando a exclusão de que trata o art. 106 do
Código" (Curso de Direito Tributário, 23ª ed., p. 101).
O inciso II do referido artigo
trata de atos não definitivamente julgados. Embora a lei não defina, entende-se
que o julgamento definitivo pode ser administrativo quanto judicial. São três
as exceções estampadas no referido inciso:
1ª) quando a lei nova já não
definir como infração fiscal determinado ato.
Neste caso, a lei tributária traz
inspiração do Código Penal. Verifica-se que o dispositivo trata exclusivamente
de infração, não cuidando do pagamento do tributo. Desta forma, quando a lei
nova já não considera infração um determinado ato praticado pelo contribuinte
(que não deveria fazer pela lei antiga), ou não praticado pelo contribuinte
(que deveria fazer pela lei antiga), e estando esta ação praticada ou não
praticada ainda sem julgamento definitivo, a infração passa a ser desconsiderada
em razão dos termos da nova lei.
Explica Sacha Calmon Navarro
Coêlho: "Dá-se que o contribuinte praticou o ato vedado ou não praticou o
ato obrigatório. Cometeu em qualquer dos casos uma infração. Lei posterior
risca do mapa jurídico o dever de fazer que foi descumprido ou o dever de não-fazer
que, não obstante, foi exercido. A lei posterior e nova, pois, aplica-se
retroativamente para apagar os deveres, as infrações e as penalidades às
infrações. Por que punir o desrespeito a algo que, se reconhece, não era assim
tão importante, tanto que pôde ser desjurisdicizado?" (obra citada, p.
566).
2ª) quando a lei nova deixe de
tratar o ato uma infração, desde que não tenha sido fraudulento ou implicado em
falta de pagamento do tributo.
A segunda exceção assemelha-se à
primeira, pois ainda versa sobre a aplicação da lei nova, mais benigna ao
contribuinte ao desconsiderar certo ato como infração. Mas, ressalta o CTN,
desde que não tenha ocorrido fraude, nem omissão de pagamento do tributo
exigido.
Observa-se, pois, que há de se
distinguir os atos em relação aos seus objetivos. Caso o ato tenha sido
praticado, ou não praticado, para obter-se uma vantagem fraudulenta, ou
camuflando uma prática ilícita, ou, então, ensejando o não-pagamento ou
pagamento a menor do tributo, a infração prevista na lei anterior permanece em
vigor.
Novamente o mestre Sacha Calmon:
"É preciso interpretar o dispositivo cum modus in rebus. Somente nos casos
de fraude tipo nota fria, falsificação de documento fiscal, declaração
maliciosamente falsa com proveito financeiro, há de se dar aplicação ao
dispositivo" (obra citada, p. 567).
Quando, então, o ato pregresso
foi praticado de má-fé, comprovadamente falso, com intenções de burlar o Fisco,
perde o contribuinte qualquer direito à aplicação benigna da nova lei.
3ª) quando a penalidade da lei
mais nova substitui a mais grave da lei anterior.
Neste caso, à semelhança do
Código Penal, a pena menos severa da lei nova substitui a mais grave da lei
anterior, vigente quando o ato punível foi praticado.
Importante, no caso, lembrar que
a benignidade só se aplica às penalidades punitivas, não alcançando as multas
moratórias, lembrando que somente é aplicável aos atos ainda não
definitivamente julgados, administrativa ou judicialmente.